A história das pequenas coisas - o poder do batom
No
decorrer da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) é sabido que Adolf Hitler,
líder do Partido Nazi, Chanceler do Reich e Führer da Alemanha Nazi,
tinha um conhecido ódio por lábios pintados de vermelho sendo que “evitar o uso
de batom vermelho” estava na lista de recomendações que os estrangeiros que
visitavam a Alemanha deviam seguir. O pensamento retrógrada do líder da
Alemanha refletia a misoginia existente pelo Führer e ainda a tentativa de
minimizar as mulheres, reduzindo-as meramente às suas aparências, tratando-as
assim como objetos sem direito à própria identidade. Graças a isto, o uso de
batons vermelhos aumentou drasticamente nos países aliados.
Antes
da primeira Grande Guerra apenas as atrizes usavam maquilhagem. Contudo, graças
à mudança cultural que esta trouxe mas também pelo facto das mulheres terem
começado a trabalhar (já que os homens tinham sido recrutados para o esforço de
guerra), deu-se uma maior importância ao papel feminino na sociedade e o uso de
maquilhagem reforçava isso mesmo. Os batons vermelhos passaram também a ser um
símbolo das sufragistas, usando-os quase como se fossem um uniforme.
Elizabeth
Arden, criadora de uma marca de cosméticos, distribuiu em 1912 batons
encarnados pelas várias mulheres em Nova York, chocando a sociedade por esta
cor estar associada a bruxaria, contrastando com o que todos estavam à espera
do comportamento de uma mulher: simples e discreto, para agora realçar-se no
meio da multidão, não ficando indiferente a quem as visse. Esta cor de batom
tornou-se bastante popular nos anos 20, sendo um dos sinais de emancipação
feminina.
À
semelhança da I Guerra, na Segunda Guerra Mundial os produtos de cosmética
passaram a ser vistos como um dever patriótico nos países aliados, enfrentando
as preferências de Hitler. Era de tão grande importância o uso de batons
vermelhos nos países aliados que parte do valor dos impostos era usado na
produção de anúncios dos mesmos, encorajando as mulheres a usá-los [fig.1].
Como o uso de batons vermelhos aumentou bastante nestes países, o preço destes
tornou-se excessivo devido às despesas da guerra e, por este motivo, várias
foram as mulheres que pintaram os seus lábios com beterraba. Ao contrário de
muitos produtos cuja produção foi interrompida durante a II Guerra Mundial, a
de batons vermelhos não parou nos países inimigos do Reich alemão, havendo com
isto uma afirmação contra o fascismo [fig.2]. Usar os lábios pintados de
vermelho tornou-se um símbolo de revolta contra o regime nazi tão grandioso que
o exército americano impunha que todas as mulheres que fizessem parte do mesmo
usassem os lábios desta cor obrigatoriamente [fig.3].
Nos campos de concentração os batons também obtiveram grande protagonismo: aquando libertas, as mulheres procuraram batons no Canadá e alguns foram-lhes oferecidos pela Cruz Vermelha [fig.4]. Muitas foram as que se deitaram em suas camas, sem lençóis nem qualquer roupa vestida, mas com os lábios escarlates. “Podia-se vê-las perambulando por todo lado sem nada, a não ser um cobertor em cima dos ombros, mas com os lábios bem vermelhos. Vi uma mulher morta em cima da mesa de autópsia, cujos dedos ainda agarravam um pedaço de batom” (Tenente- Coronel Mervin Willett Gonin)[1].
Um simples batom pode parecer insignificante, mas não o é. As mulheres judias que se encontravam nos campos de concentração, quando finalmente se encontravam longe dos perigos nazis, procuraram os seus batons vermelhos, o que as fez sentir humanas e mulheres novamente. Um simples batom trouxe-lhes isto: humanidade. Após pintarem os lábios, puderam experienciar o sentimento de serem gente outra vez, e não apenas um simples número tatuado no braço. A verdade é que, para estas mulheres, um batom trouxe-lhe uma luz ao fundo no túnel. Um simples batom. “É impossível entender o mundo quando desconhecemos o contexto no qual as verdades se formam” (Tenente- Coronel Mervin Willett Gonin).
Ainda
hoje o uso de batons encarnados mantém a simbologia da emancipação feminina,
sendo este objeto mais do que um mero batom, mas um elemento de repressão ao
discurso de ódio e de rebaixamento misógino da mulher. Este “veste” a mulher de
personalidade e igualdade no geral, mostrando a todos as suas competências,
dignidade e força. No batom vermelho é condensado toda a história e luta
feminina, simbolizando uma causa maior.
[1] Excerto do diário do Tenente-Coronel Mervin Willett Gonin, um dos
primeiros soldados britânicos a libertar Bergen-Belsen - um campo de
concentração alemão -, a 15 de abril de 1945.
Anexos:
Fig.1- Anúncio do batom “VICTORY RED LIPSTICK – 1941”
Em 1940 Elizabeth
Arden, uma maquilhadora e ativista feminina, foi convidada a criar um batom
projetado especificamente para mulheres em serviço militar. Por isso, em 1941
foi criado o “Montezuma
Red”, um batom vermelho que combinava com o contorno encarnado dos
uniformes militares femininos. “Montezuma Red” foi distribuído a mulheres militares num kit que
incluía também um creme e um verniz de unhas, também ele vermelho. Mais tarde,
graças à popularidade do primeiro batom, Elizabeth Arden criou o “Victory Red”,
entre outros tantos, para que qualquer mulher pudesse honrar com orgulho o seu
país.
s/a, 1941.
Fig.2 - “Soldados do Céu”
Acredita-se que
esta fotografia foi encomendada para fins de propaganda americana, mostrando o
papel das mulheres no esforço de guerra. Muray, fotógrafo desta obra, morava
nos Estados Unidos e foi um dos pioneiros na captura de fotografia cores, quando
reveladas.
Fotografia de Nickolas Muray, 1940.
Fig.3- Uma soldado do Exército
norte-americano na Segunda Guerra, com seus lábios escarlates.
Durante a Segunda
Guerra Mundial, o slogan “Beauty is your duty” (= estar bonita é o teu dever)
tornou-se um ato de compromisso patriótico, defendido e reforçado pelo próprio
Winston Churchill (Ex-primeiro-ministro do Reino Unido).
s/a, 1944.
Pouco depois da
chegada da Cruz Vermelha em 1945 a Bergen-Belsen, um campo de concentração
alemão, apresentaram-se grandes quantidades de batons vermelhos ao local. Esta
“ação de génio” devolveu humanidade a muitas vítimas do nazismo.
Banksy, s/d.
Webgrafia:
·
https://www.publico.pt/2021/01/18/p3/noticia/vermelho-nao-so-questao-estetica-1946796 [consultado a 04 de fevereiro de 2021];
·
https://brasil.elpais.com/smoda/2020-05-03/por-que-churchill-transformou-o-batom-em-produto-de-primeira-necessidade-em-tempos-de-crise.html [consultado a 08 de fevereiro de 2021];
·
https://zheit.com.br/post/a-maquiagem-nas-guerras [consultado a 16 de fevereiro de 2021];
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https://brasil.elpais.com/smoda/2020-05-03/por-que-churchill-transformou-o-batom-em-produto-de-primeira-necessidade-em-tempos-de-crise.html [consultado a 16 de fevereiro de 2021];
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https://portalcafebrasil.com.br/artigos/humanidade-em-meio-ao-horror/ [consultado a 20 de fevereiro de 2021];
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https://besamecosmetics.com/blogs/blog/behind-the-color-1941-victory-red [consultado a 2 de março de 2021];
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https://www.cosmeticsandskin.com/companies/elizabeth-arden-1930.php [consultado a 2 de março de 2021];
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https://laradevganmd.com/blog/2020/3/24/the-red-lipstick-effect-how-we-stay-grounded-during-a-national-pandemic [consultado a 2 de março de 2021];
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https://brasil.elpais.com/smoda/2020-05-03/por-que-churchill-transformou-o-batom-em-produto-de-primeira-necessidade-em-tempos-de-crise.html [consultado a 2 de março de 2021];
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http://www.oldmagazinearticles.com/WORLD-WAR-2-cosmetic_history#.YIqck7VKjIU [consultado a 10 de março de 2021];
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https://marta-fashionoir.blogspot.com/2019/10/batom-do-holocausto.html [consultado a 10 de março de 2021];
·
https://depecomasmaos.blogspot.com/2019/08/batom-do-holocausto.html [consultado a 15 de março de 2021].
Muito bom e bastante importante para a sociedade em que vivemos hoje em dia.
ResponderEliminarParabéns está excelente! :)
Muito obrigada!
EliminarParabéns Concha, adorei o nome do teu blogue e a pequena introdução. Achei imprescindível e igualmente relevante a escolha do tema. Está divinal!
ResponderEliminarMuito obrigada! Beijinhos!
EliminarReagir, indignar-se, atuar são gestos de cidadania que fazem a diferença entre o vulgar e o singular.
ResponderEliminarE muitas vezes é mais eficaz reagir no plural.
Desejo que continue a fazer a caminhada que tenho observado com muita admiração! E obrigada pelo enriquecimento que deu às aulas, inclusive com o baton vermelho.
Beijinhos!
Obrigada pelo apoio e pelas suas palavras. Um beijinho!
EliminarLutar e fazer ouvir-se por direitos que acreditamos, de forma digna e respeitosa, deverá reger a nossa conduta e modo de estar na vida, sempre! Que orgulho é saber que sempre, na história da humanidade, se destacaram pessoas com este espírito! Que também tu mantenhas e desenvolvas este espírito!
ResponderEliminarBeijinho minha querida, estás de parabéns e também tu me enches de orgulho! ❤️
Muito obrigada pelo comentário! Um beijinho!
EliminarMuito bem dito Constança! Gostei muito do Blog e do texto, espero ver mais conteúdo fantástico como este aqui. Tenho muito orgulho em ti, parabéns!
ResponderEliminarMuito obrigada pelas palavras e apoio! Beijinhos!
EliminarParabéns pelo bom trabalho! Texto muitíssimo importante!
ResponderEliminarMuito obrigada!
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